quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O Divino e o Humano no Calvinismo


Calvino cria na absoluta soberania de Deus. Como os outros Reformadores, ele cria também que o crente, em seu coração, é imediatamente ligado ao Deus soberano, como Ele se revelou em sua Palavra. Como já mostramos (em outro lugar), isto não significa que a atividade soberana de Deus, para Calvino, se mantenha numa relação de indiferença ou, possivelmente, de antítese para com aquilo que é humano e para com aquilo que pertence ao campo das realizações culturais humanas. Calvino entendia de tal modo a atividade de Deus, que não deixava lugar a um tal dualismo. O Deus que opera soberanamente no coração do homem, é o mesmo Deus que se revelou como o Criador do homem e dos valores de sua cultura.

Aquele que tem um profundo domínio da revelação que Deus fez de si mesmo, como Criador, compreenderá que o divino e o humano não devem ser concebidos como se fossem extremos contrários de um espectro, de modo que exaltar a um, seria, de per se, rebaixar o outro. Deus não é honrado quando se envilece a Sua criação, nem a criação é exaltada quando se envilece a Deus. A criação é expressão da vontade de Deus como Criador. À criação, em seu estado incólume, Deus chamou boa. Ele se revelou como estando ativamente interessado nela. Para glorificar a Deus não é preciso denegrir a criação: É apenas necessário pôr em prática, em relação à natureza, aquilo que responde à vontade criadora de Deus para ela.

Aquele que tem profunda compreensão da revelação bíblica no que diz respeito à criação, compreenderá que o que está em discussão não é a mera ênfase sobre o que é divino ou o que é humano, mas se – quer seja... humano ou pertença à esfera da atividade humana -, tem sido levado a moldar-se à vontade de Deus, como está expressa em Sua lei. Ou seja, verá que o que está em discussão é se tais atividades respondem àquilo que Deus desejava para elas desde o começo.

É Claro que a doutrina reformada da imediata operação da graça de Deus através de Sua Palavra no coração humano levantou-se em oposição ao ponto de vista de que o humano é uma esfera semi-autônoma que antecede o divino e que, realizando obras pelos próprios poderes do indivíduo, serve como um preâmbulo necessário à operação da graça. Quando Lutero começou a expor sua doutrina da justificação só pela fé, o nominalista Guilherme de Occam (leia mais sobre ele no artigo A Navalha de Occam no Tópico TEXTOS FILOSÓFICOS), em cuja lógica ele tinha sido instruído por Trutvetter e Usingen – e a quem Lutero chamou seu professor (magister meus) -, já tinha criado um clima de pensamento incompatível com a idéia de que a natureza é o preâmbulo da graça. Occam rejeitou a idéia de que qualquer coisa fora do Evangelho pudesse servir para julgá-lo ou agir como uma plataforma adaptada à misericordiosa provisão de Deus e para a resposta de fé por parte do homem. Lutero orgulhava-se de pertencer à escola de Occam, a quem considerava o principal e o mais talentoso dos doutores escolásticos.

A posição nominalista pareceu ajustar-se, além disso, às suas doutrinas a respeito da graça. Os nominalistas ensinavam que Deus age diretamente, dirigindo-se ao homem com absoluta e soberana exigência, sem dar lugar ao exercício de poderes humanos naturais de juízo, discriminação ou escolha. Ensinavam que a graça divina não é concomitante, mesmo quando entendida como perfeição divina, com as obras humanas. Ensinavam que a graça divina opera imediatamente no coração do homem, indiferentemente ou, mesmo, em oposição à capacidade humana.

Não estou sugerindo que a compreensão de Lutero a respeito das doutrinas da graça tenha surgido ou, mesmo, tenha dependido deste ensino dos nominalistas. Sustento que o seu entendimento é fruto de sua leitura das Escrituras. A tradição nominalista, contudo, forneceu-lhe base para a sua crítica contra o ponto de vista de que a natureza é o preâmbulo da graça. Depois de descobertas estas doutrinas, no entanto, os ensinos nominalistas contribuíram para influenciar seu desenvolvimento teológico e para determinar sua concepção a respeito de como o Evangelho se relaciona com a cultura.

É reconhecido que o ponto de vista de Lutero a respeito do que é chamado “dois reinos” é profundamente influenciado pelo nominalismo. Para a esfera da natureza, ensinava ele, o conceito aristotélico do conhecimento, amplamente aceito, é suficiente. Para a religião, contudo, só a revelação é autoridade. Nesta área, a razão humana tem de submeter-se inteiramente à Palavra de Deus. A inteligência natural e sua lógica, limitadas ao finito como são, são prejudiciais à teologia porque não conduzem à fé, mas afastam dela.

A maneira pela qual esta tradição nominalista fazia distinção entre o divino e o humano, tem, na verdade, um ponto de contato com o emprego verbal concreto nas Escrituras, pois elas falam, freqüentemente, da atividade de Deus e da atividade do homem de tal maneira, que os coloca em posição diametralmente oposta um contra o outro. É possível, por isso, adotar essa maneira de as Escrituras colocarem a questão, sem penetrar a verdade que está por trás dela. Isto, ao que parece, era o que ocorria com o modo como os nominalistas entendiam o ensino bíblico a respeito de Deus e do homem, pois pensavam eles em termos de confronto entre graça e natureza. Era inevitável que esta tradição (nominalista) influenciasse a maneira pela qual Lutero desenvolveu sua teologia e concebeu a relação entre Cristianismo e cultura.

Lutero, corretamente, afirma a doutrina evangélica da imediata operação da graça soberana de Deus, através da Palavra. No pensamento de Lutero, contudo, há uma marcante distinção ente a esfera íntima do divino, atividade espiritual, e a esfera exterior das práticas seculares. Na linha da posição nominalista, esta esfera exterior, em contraste com a esfera íntima, é considerada como formal e convencional. Pelo menos em relação ao campo espiritual, ela é colocada em posição de indiferença. A atividade cultural humana, que pertence a esta esfera externa, é aceitável, contanto que seus padrões não sejam aplicados à esfera espiritual. Não há, porém, nenhuma conexão íntima ente ela e este campo espiritual. A atividade espiritual influencia a cultural, para empregar uma metáfora, somente quando se agita e se derrama dentro dela. Em comparação com a atividade espiritual, a atividade cultural humana deve ser tolerada.

Dentro deste contexto, não causa surpresa o fato de Melanchthon – ao descobrir que na posição de Lutero não havia nenhum ponto íntimo de ligação no contato com a cultura e voltado para os fundamentos da teologia, em seu programa prático da reforma universitária -, inclinar-se mais e mais para uma posição não crítica de aceitação daquilo que vinha a ele a partir do meio secular. Acomodou sua posição mais e mais à posição de Aristóteles que, segundo dizia, tinha desenvolvido a única filosofia científica. Certo, com relação às reformas da doutrina da graça, em sua convicção pessoal, Melanchthon, não obstante, acomodou-se à cultura secular, de um modo que era impossível a Calvino.

No pensamento de Calvino, não encontramos um tal dualismo. Para ele, na verdade, não há esfera de atividade humana relativamente autônoma, que preceda a operação da graça de Deus. Além do mais, não há limite para a soberania divina, quando ela opera no coração humano. No pensamento de Calvino, contudo, estas posturas combinam com a profunda compreensão de doutrina bíblica da criação. Deus é o Criador soberano absoluto e sustentador de todas as coisas. Nada existe que Ele não tenha criado e que não esteja sujeito à Sua vontade criadora. Todas as coisas, inclusive as que parecem mais triviais, são reveladoras da Sua soberania. Além do mais, Sua vontade criadora soberana abrange aquilo que é humano e aquilo que pertence à esfera das realizações humanas, naturalmente as da história e do desenvolvimento cultural. Tudo está sujeito à Sua vontade como vem expressa na Sua lei.

Em Calvino, portanto, não encontramos uma simples e global distinção entre Deus e homem, entre aquilo que é divino e aquilo que é atividade humana, noções que equivalem a cálculo matemático. Na verdade, pode-se respeitar a plenitude da distinção bíblica ente o Criador e Sua criatura. No entanto, é um profundo discernimento desta verdadeira doutrina bíblica que leva o indivíduo a evitar o uso dos termos “Deus” e “homem”, em sentido global (em bloco), modo simples e absoluto contra o qual estamos fazendo advertência. Esta cilada pode ser evitada se, com Calvino, pensarmos dentro da criação, sob o horizonte da revelação de Deus, em termos da expressão da vontade de Deus Criador, em Sua lei.

Calvino compreendeu que tudo o que se conforma com a vontade de Deus, como está expressa na criação, tem a aprovação de Deus. Quando responde ao propósito criador de Deus, o homem responde àquilo que está de acordo com a sua natureza, àquilo que Deus, na criação, declarou bom. Por isso, Calvino pôde aceitar com entusiasmo o programa da ciência natural, de pôr às claras os segredos do universo de Deus. Deste modo, também pôde ele aceitar livremente as realizações do gênio humano, que contribuíam para a humanização do homem. Concedia que estas coisas não tinham sentido separadas da religião; porém, na verdade, eram plenas de sentido com ela. Eram preciosos dons de Deus concedidos (ao homem) pelo Espírito Santo.

Para dizer a verdade, a humanidade está depravada em seu coração por causa do pecado, e a cultura não se desenvolveu sem severas distorções. A depravação, contudo, é contrária à natureza, não é natural. Aquilo que não responde à vontade criadora de Deus, que não está verdadeiramente de acordo com Sua lei, é uma expressão da anti-naturalidade que entrou no mundo por causa do pecado. Esta deformação, contudo, não obstante ser grande, não é tal que tenha separado o mundo e sua cultura do propósito e plano de Deus. Nem é tal que o mundo não manifeste mais a glória de Deus. As boas dádivas de Deus são largamente distribuídas, sem qualquer favor especial, aos da família da fé. A verdade, que está presente pela influência do Espírito Santo, deve ser abraçada, portanto, onde quer que seja encontrada. A despeito da depravação do coração do homem, Deus tem, por Sua graça comum, conservado resíduos candentes daquilo que responde à Sua vontade criadora. Por isso, é possível entender que haja mesmo brilhantes realizações do espírito humano entre os que têm, em seus corações, pouco ou nenhum lugar para os ensinos da Palavra de Deus.

O ponto de vista de Calvino a respeito da relação entre Deus e o homem parece estar compendiado em sua famosa afirmação, feita no começo de sua Instituta, de que há uma correlação entre o conhecimento que o homem tem de Deus e o conhecimento que tem de si mesmo (Dei notitiam et nostri res esse coiunctas). Isto significa que o homem só se conhece à luz de Deus e de Sua revelação, com o corolário implícito de que, se se conhece verdadeiramente, conhece verdadeiramente também a Deus. Não é muito extrair desta correlação o pensamento de que o homem, estando verdadeiramente relacionado com Deus para piedade, estará verdadeiramente relacionado consigo mesmo, e estando relacionado consigo mesmo pela piedade, estará verdadeiramente relacionado com Deus.

Segundo meu modo de entender a questão, a idéia de Calvino a respeito da correlação entre o nosso conhecimento de Deus e o nosso conhecimento de nós mesmos abriu o caminho para ele se deparar com aquilo que, para ele, deve ter sido o maior problema, isto é, o problema da relação entre a educação humanística que ele recebeu, e pela qual continuava tendo grande respeito, e as verdades do Evangelho, que ele abraçou em sua conversão. Essa relação expressava um ponto de vista no qual o perigo de tomar “Deus” e “homem”, o “divino” e o “humano”, em bloco, já tinha sido superado. Seu ponto de vista permitia-lhe, de uma forma verdadeiramente compatível com o ensino das Escrituras, assegurar um lugar pleno à humanidade do homem e às realizações culturais, sem detrair um mínimo da honra e da glória de Deus.

Calvino considerou a humanidade do homem em sua profundidade. De fato, esse modo profundo de compreender o homem não se inspirou na idéia de humanidade universal, tal como a do Renascimento, onde se pensava que o homem fosse uma personalidade autônoma, a fonte criadora de seus próprios valores; ao invés disso, resultou da revelação de Deus no que se refere ao Seu propósito na criação, aos efeitos deformadores do pecado e à provisão de Deus para a redenção do homem e de seu mundo. Para Calvino, tornou-se possível relacionar a idéia de humanidade à antítese religiosa retratada na Escritura. O caminho foi aberto pela idéia de que o homem se torna humano em sua relação com Deus. O homem, em si mesmo, é verdadeiramente homem quando responde àquilo que constitui o modo de ser de sua natureza, àquilo para o que foi criado. Deste modo é possível constatar que o humanum é realizado não no isolamento autônomo do homem em relação a Deus, mas na sua relação com Ele. A autonomia humana pecaminosa, longe de ser o caminho para a auto-realização humana, é, em si mesma, uma distorção daquilo que é humano.

Contra esta posição, é claro que o que está em discussão não é uma ênfase simples, relativa ou a ausência de ênfase a respeito do homem e dos produtos da atividade humana. O ponto em questão é se naquilo que o homem faz e no modo como se concebe a si mesmo está de acordo com o que Deus planejou para ele desde o começo, em Sua soberana vontade criadora. Segue-se, deste fato, que qualquer idéia de homem ou de atividade humana, ou dos produtos dessa atividade, deve ser examinada quanto às suas raízes religiosas. Procura o homem expressar sua humanidade segundo a lei de Deus? Está ele pronto a reconhecer a inaturalidade ligada a tudo o que é humano e a toda realização humana, por causa do pecado? Está ele preparado para depender – em tudo o que se relaciona com ele mesmo e com suas atividades -, da graça redentora de Cristo e de seu poder restaurador?

A partir desta perspectiva, percebemos agora que podemos trazer à luz, de forma mais efetiva, quão humanístico é o pensamento de Calvino. Sua posição, no que se refere aos interesses da glória de Deus e do Evangelho de Jesus Cristo, não exige que ninguém negue ou mesmo, deprecie aquilo que é humano. Na realidade, a humanidade do homem pode ser exaltada sem que se avilte a honra de Deus. O interesse naquilo que é humanum e naquilo que a ele se refere só se torna humanismo no sentido pejorativo, quando defende o ponto de vista de que o centro de gravidade do homem, como se existisse, reside nele mesmo, numa presumida autonomia vis-à-vis com o seu Criador. Esta espécie de humanismo, como fizemos notar, surgiu durante a Renascença e floresceu no tempo do Iluminismo. Contra esta espécie de humanismo Calvino reagiu vigorosamente, visto que seus expoentes estavam tentando, por todos os meios à sua disposição, fazer abortar a causa da Reforma.

http://www.ocalvinista.com/2009/12/o-divino-e-o-humano-no-calvinismo.html Acesso em 25/02/2011

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